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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Livre Sonhar




Meu sonho tem a irrealidade
de um rosto refletido no espelho,
mas seu semblante me conduz.
Ser tão pequeno face ao assombro do mundo
e ter um só coração pra tamanha consternação,
são apenas banais circunstâncias
que não barram o poder da ilusão:
meu cavalo relincha relâmpagos
e seu tropel estremece o granito,
e as sombras da estrada tenebrosa
se calam ao comando do meu grito.

Enternecer-me no calmo crepúsculo,
não temer a crueldade da espada,
ceder ao fraco, deter o orgulho do forte,
alisar o suave cabelo duma criança
e aprender sua inocente esperança,
doar-me a cada efêmero amor eterno,
calar-me constrito frente o anônimo sepulcro,
receber a paz da água
que goteja da folha orvalhada,
ou que se oculta no poço sombrio:
isso ameniza a realidade
e sua fria solidez de mármore.

Captar o sonho num olhar feminino,
e saciá-lo, com o côncavo das mãos,
de águas colhidas da fonte bondosa,
contemplar a eterna face sonhadora,
desarmado, andar pelos seus passos,
e entregar-me total, aos seus braços:
isso suaviza meu caminho
e adiciona algum carinho
à dura frieza do mármore.

Andar, sem destino, sobre a grama,
saboreando o farfalhar das ramas,
interrogar o que canta um pássaro,
ver dourada a ferrugem do cascalho,
e aguardar, sem pressa, o anoitecer
que a perdiz antevê no pio distante,
sentir que são minhas essas dádivas,
desdenhar o ouro, o estulto tesouro
e a glória vã que a espada conquista:
isso já é quase sonho
e absolve a rudeza do mármore.

Caminhar na erma madrugada,
expondo-me, em desafio, aos demônios,
entender o que sonham os homens
e, mais do que isto, por que sonham,
beber o vinho dos deuses, comer ambrosia
e demolir as pretensões da morte,
desafiar Zeus e roubar suas ninfas,
com elas nadar nas águas do Pínio
e depois, enlaçar-me à mais linda,
pra com ela viver eterno encanto:
isso, sim, é o sonho
que dissolve o real e o mármore.

Alaor Chaves