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sábado, 29 de outubro de 2011

Oito Sílabas para Fernando Pessoa


  
Lá se aparata o poente
de beleza que aqui me dói
natureza, que nunca cessas,
cessar fazes meu coração.

Não sei por que tua beleza
tão fundo padece em mim,
por mais que a mente esqueça
minh’alma é dor sem fim.

Nem sei se existo ou se finjo
presença pra te contemplar,
alturas sem mim já atinjo
maior que viver é sonhar.

Alaor Chaves

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A demolição da casa de Dona Fulana


Mas eu ainda não compreendo o que acontece
Quando aquilo que sonhamos se desmorona
Entre os demais escombros do espírito

Passei pela nova avenida que se desenha na paisagem
Entre os olhares absortos dos pedestres
E vi que finalmente derrubaram a velha casa

Sua proprietária, às pressas, já havia partido
Talvez voado para um ninho mais seguro
No lugar mais alto da cidade, na favela,

E os operadores de máquinas festejam sua saída
E derrubavam sem piedade as últimas paredes
Da construção de toda uma vida

Tallu Fernandes

terça-feira, 25 de outubro de 2011

JORGE LUIS BORGES



Sem ti, o gaúcho se acovardou,
o punhal cravou no próprio peito,
e o sangue jorrado não foi rubro.
O vento dos pampas não sopra mais assombros
nem fala de madressilvas,
a milonga e o tango só dizem o que cantam
e as eras dos pátios
(cujas cisternas já não invertem o céu)
não mais consagram o crepúsculo.
Nenhum côncavo acolhe a fantasia
e o real se escorrega no abismo convexo,
e o abismo não é mais espanto.
O infinito se amiudou e o eterno já é morte,
as mentes não mais se perdem em labirintos
de aparatoso e inútil tédio. O cotidiano ficou quase banal
(em outros termos, mais dolorosamente absurdo).
O rio de Heráclito parou seu Tempo,
a flecha de Zenon congelou-se pra sempre
no mármore do espaço, como
uma impossível escultura do paradoxo.
Walt Whitman abaixou a voz, desistiu
de ser infinito e ficou apenas eterno,
como os deuses.
A Argentina tornou-se argentina,
um adjetivo sem objeto, e as ruas de Buenos Aires
hoje só semeiam distâncias
impiedosas na planura infindável.
Sem ti, cada homem é de novo
uma encenação que percorre
um caminho improvável e solitário,
e, talvez, nem descubra que
seus passos são uma alucinação da alma.
A insônia já não é lúcida, é apenas atroz.
A noite fechou os olhos dos espelhos.

Alaor Chaves

Ficheiro:Jorge Luis Borges - Cimetière de Plainpalais.jpg 


QUASE-POESIA



No céu, a lua amarela;
só ela!

Ao luar, a alva donzela;
mais bela!

No brejo, emerge uma flor;
que olor!

Na noite, a rosa em pranto;
quebranto!

Pro verso, a fala é pequena;
que pena!


Alaor Chaves



segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Livre Sonhar




Meu sonho tem a irrealidade
de um rosto refletido no espelho,
mas seu semblante me conduz.
Ser tão pequeno face ao assombro do mundo
e ter um só coração pra tamanha consternação,
são apenas banais circunstâncias
que não barram o poder da ilusão:
meu cavalo relincha relâmpagos
e seu tropel estremece o granito,
e as sombras da estrada tenebrosa
se calam ao comando do meu grito.

Enternecer-me no calmo crepúsculo,
não temer a crueldade da espada,
ceder ao fraco, deter o orgulho do forte,
alisar o suave cabelo duma criança
e aprender sua inocente esperança,
doar-me a cada efêmero amor eterno,
calar-me constrito frente o anônimo sepulcro,
receber a paz da água
que goteja da folha orvalhada,
ou que se oculta no poço sombrio:
isso ameniza a realidade
e sua fria solidez de mármore.

Captar o sonho num olhar feminino,
e saciá-lo, com o côncavo das mãos,
de águas colhidas da fonte bondosa,
contemplar a eterna face sonhadora,
desarmado, andar pelos seus passos,
e entregar-me total, aos seus braços:
isso suaviza meu caminho
e adiciona algum carinho
à dura frieza do mármore.

Andar, sem destino, sobre a grama,
saboreando o farfalhar das ramas,
interrogar o que canta um pássaro,
ver dourada a ferrugem do cascalho,
e aguardar, sem pressa, o anoitecer
que a perdiz antevê no pio distante,
sentir que são minhas essas dádivas,
desdenhar o ouro, o estulto tesouro
e a glória vã que a espada conquista:
isso já é quase sonho
e absolve a rudeza do mármore.

Caminhar na erma madrugada,
expondo-me, em desafio, aos demônios,
entender o que sonham os homens
e, mais do que isto, por que sonham,
beber o vinho dos deuses, comer ambrosia
e demolir as pretensões da morte,
desafiar Zeus e roubar suas ninfas,
com elas nadar nas águas do Pínio
e depois, enlaçar-me à mais linda,
pra com ela viver eterno encanto:
isso, sim, é o sonho
que dissolve o real e o mármore.

Alaor Chaves

















domingo, 23 de outubro de 2011

Poesia sem palavras

                               Para Maria Helena

       

Não busco poesia no verso ritmado;
não sou cantor, tento apenas ser poeta.
Tampouco busco o poético em palavras rimadas:
consonâncias, na substância mal ligadas,
pouco me tocam, são pouco mais que um eco.
Nem vejo graça em falar desventuras,
mais afins ao tango, ao bolero, ao samba-canção.
A saudade é indizível, elide-se da palavra,
deixo em paz minhas saudades, caras saudades;
não tenho signos que as levem até você.
O heroico, a Homero coube inventá-lo,
e tão bem o fez que exauriu essa lavra;
o restolho,
deixemo-lo aos guerreiros e seus hinos.

Já a lírica, sempre me pede extroversos,
alheios
a esta índole encerrada em si e montanhas,
e se aventuro nalgum verso enternecido,
de algum lamentado amor perdido,
ele tanto enrubesce, no papel perplexo,
que de pronto o recolho e resguardo.
E assim, despojado dos lícitos recursos,
viro poeta sem verso, orador mudo, reverso,
adverso.

Mas quando é setembro, o ipê luminoso,
o canto derramado do sabiá, sem palavras,
o pio indecifrável do curiango – o dos olhos de brasa –
que preenche a sombra da noite muda,
o cheiro do capim queimado, a espera da chuva,
o vento quente tisnado de bruma escura,
o corpo indolente na sombra do pau d´óleo,
trazem uma inquietação vaga, teimosa,
imagens errantes borboleteando na mente,
recordações precisas de passados incertos,
saudades de venturas vagas, quase inventadas,
um misterioso gozo em lembrar infortúnios...
Isso é poesia, minha amiga.
Poesia sentida que nunca digo,
pois a palavra está sendo inventada,
e o que ora temos são elementos toscos,
capazes de pedir água, um beijo, socorro,
mas impotentes para a poesia que trago.

Minha amiga, bem mais que amiga,
já que não sei como dizer,
vamos tomar um trago;
o vinho é como setembro,
vai nos encher de muita poesia,
que irá revelar-se nos olhos, no riso, no silêncio...




                    Alaor Chaves

sábado, 22 de outubro de 2011

Replantando a esperança




Numa imprecisa confluência da noite,
deixei duas esperanças
sob um luar enfadado,
sob cansadas estrelas,
sob uma frustrada aurora.
Não sei buscá-las, pois havia neblina
e uma predestinação de que tudo se dissolvesse
como, no vento, um indefeso perfume.
Cultivarei outras
sob a mesma lua arredia,
sob as mesmas estrelas inarredáveis,
sob outra, quiçá mais generosa,
aurora.


Alaor Chaves

A dissolução do mundo



Nada tem ocorrido
como foi prometido
e nenhum anjo me consola.

Quando menino, disseram
que eu tinha um anjo só pra mim;
mas não foi bem assim.
A cópula não para de multiplicar os homens,
mas os anjos, sem sexo,
ficaram estagnados.
O censo revelou que há cidades inteiras
sem sequer um anjo, e assim
sujeitas a terremotos e às mais torpes iniquidades;
e os espelhos duplicam os homens
mas não sabem refletir anjo,
o que mais agrava o desarranjo.

Quando nasci
não contaram que o mundo está em dissolução,
que o amor já foi abolido
e a compaixão é apenas um signo arcano no dicionário.
A guerra mata o corpo dos vencidos;
aos vencedores, mata-lhes a alma;
nas cidades invadidas,
mulheres entregam os maridos vencidos
e depois se entregam aos carrascos sem alma
para gerar mais desalmadas criancinhas.

Quanto a mim, não sei se tenho alma,
mas trago um coração que sofre.
E ninguém o consola.

Deus modernizou o mundo
que agora navega no piloto automático:
maravilha técnica que redundou no caos.
Neste mundo mecânico e temerário,
ao próprio destino abandonado,
dilúvios não mais dizimam os ímpios,
e já não vejo consolo para tanto
calamitoso desatino.

Eu queria mil anjos e não tenho anjo algum,
e na rua circulam mulheres sem coração.
Lindas mulheres sem alma nem coração,
insinuantes, caminham sob roupas transparentes,
                     convidando-me a segui-las até o abismo.

Alaor Chaves



quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Aos Pés da Cama


A amizade é a penúltima a sair
Depois de todas as virtudes
Haverem se retirado

Elas, fragilizadas,
Uma a uma
Vão deixando o quarto

E este, vazio,
Espreita uma sombra
Iminente

Mas a amizade, vagarosa,
Segura a porta,
Até que a esperança entre



Tallu Fernandes

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A marcha de 12 de outubro


O país marchou
Contra sua pior violência
E sem nenhum comando

No fim da tarde
Apenas
Ouvi pelo rádio

Que uma multidão
Silenciosa
Conspirava pela rede

E marcara um
Encontro secreto
No coração de muitas cidades


Tallu Fernandes

Iluminação


Ninguém
É
Feliz

A felicidade
É o que Deus tomou
De Adão e Eva

Mais iluminada
Que a cidade
De Paris

É a luz
Que à escuridão
Se entrega


Tallu Fernandes

domingo, 9 de outubro de 2011

Educação


É preciso pensar
O país
Sim é preciso

Mas o país
Não se move
Pelo pensamento

O país se move
Pelas pernas e braços
Que o empurram sem pensar

E é preciso
Antes de tudo
Que o país se mova


Tallu Fernandes

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A dispersão das flores


Há uma multidão de flores
Em protesto
Em toda a extensão da rua

Falam em coro
E batem nas panelas
Contra toda espécie de amargura

Pelo visto. uma foi presa
Algum resignado
Acionou a polícia

Foi um desespero
Bombas de gás lacrimogêneo
Fizeram chorar toda a beleza


Tallu Fernandes

O fim do mundo de todo dia


Eu só tenho esta manhã
A tarde
Não me pertencerá

O poeta escreve e seu dia
É curto
Não chega ao por do sol

Antes disso
O poeta estará morto
Você não sabia?

A missão do poeta
É morrer
Quando nasce a poesia


Tallu Fernandes