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quarta-feira, 1 de abril de 2015

As Borboletas de Aricanduva


Morávamos em casas.
Nas casas havia jardins.
Uns enormes,
Outros simbólicos-
Uns crisântemos,
Um comigo- ninguém-pode,
Uma arruda,
Uma espada de São Jorge.
Não enfeitavam tanto,
Não espantavam a feiura,
Mas livravam seus donos de males piores.

As crianças não tinham virose.
Sofriam de vento virado,
Mau olhado,
E quebranto.

E dos mais pobres aos menos ricos,
Quase todos tiveram xistose.

As cercas não eram elétricas.
Eram de estacas.
As mais seguras, de arame farpado.
E mesmo estas tinham graus diferentes de segurança.
A maioria eram frouxas.
Os moleques apertavam a de baixo, levantavam a de cima,
Desespetavam a camisa,
E saltavam para roubar laranja.

Os menores infratores eram os moleques.
Quando os moleques crescessem,
Virariam, no máximo,
Alcoólatra ou trabalhador braçal.
Não existia o tráfico,
Não existia o ECA,
E não se discutia a maioridade penal.

Nas casas, os bens mais visados estavam lá fora.
Desapareciam roupas, calçados, ferramentas...
Verduras da horta.
Mas o alvo principal eram as mangas, mexericas, pêssegos,
E, especialmente no Natal,
Os bípedes do galinheiro.
As pessoas, invariavelmente,
Tinham nome de gente.
Ninguém era conhecido como "o do 103",
Ou "o da grade verde"...
Todos tinham um nome de registro, 
Ou um apelido,
E eram chamados por ele.

Onde havia garagem nem sempre havia um carro.
E acontecia de haver um carro sem garagem.
As casas eram pensadas para pessoas-
Sala, copa, cozinha, banheiro, dois ou três quartos, quintal.
Garagem para dois carros era algo impensável.

Algumas casas eram maiores,
Outras mais bonitas,
Mas a maioria se parecia.
Não havia projetos.
Não havia nem arquitetos.
E os engenheiros eram todos pedreiros.

Havia desigualdade,
Havia inveja.
Havia proletariado.
Havia falsidade.
Brigas.
Assassinatos!
Campanhas políticas.

Mas havia borboletas.
E são delas que eu mais me lembro.
As borboletas são a marca de um tempo
Em que os insetos,
As amizades,
E os homens,
Podiam cumprir,
Pacientemente,
As suas curtas expectativas de vida.

Um tempo em que havia
Casas,
Crisálidas,
E crisântemos.

E o efêmero não era um inseto incômodo.